Já percebeu quantos livros sobre escrita têm sido lançados ultimamente? E grande parte deles, escritos por mulheres: Gloria Anzaldúa, Annie Ernaux, Noemi Jaffe, Rosa Montero, Deborah Levy, Hélène Cixous, entre outras.
Compartilho com elas a inquietação sobre como, por que e de que maneira escrever. Penso nisso quase o tempo todo. Quando me perguntam que tipo de trabalho faço como artista visual, costumo responder: 'Eu escrevo'. Minha escrita acontece na cabeça, nos cadernos e, depois, no ateliê. Ou, mais recentemente, na cozinha, assando letra por letra até engolir o alfabeto inteiro. Escrevo com gesso, isopor, espuma, pirógrafo, pincel, estilete, cerâmica, tipos e carimbos. Às vezes, também escrevo sentada em uma cadeira, com o notebook aberto no Word, como faço agora.
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Na imagem acima: registro da escultura pública “El shock”, apresentada em 2023 na Bienal SACO, em Antofagasta, Chile, na qual escrevi, com isopor de isolamento acústico "sus mentes son como tablas rasas sobre las que nosotros podemos escribir".
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Junto com as autoras mencionadas, Ana Godoy também é fundamental para minhas reflexões sobre a escrita. Escutá-la foi muito importante durante uma das situações e formatos mais difíceis para abrigar a escrita: uma tese de doutorado. Ana Godoy, socióloga que acompanha processos de escrita, compartilha suas ideias sobre o tema em conversa no podcast Caseiríssimo. Ela questiona a relação indissociável entre leitura e escrita — uma ideia recorrente em muitos textos sobre o ato de escrever — sugerindo que, mais do que ler muito, é preciso viver mais e experimentar o mundo para escrever. Esse pensamento é construído a partir de uma perspectiva educacional, justapondo as transformações e os saberes que perdemos (ou esquecemos) no caminho entre a infância e a vida adulta.
Outra referência sobre escrita (também para ouvir) é o podcast Estratégias Narrativas, criado por Laura Cohen, escritora que também ministra cursos de escrita. Ouvi os primeiros episódios enquanto escrevia, à minha maneira, no ateliê. Logo no início do podcast, Laura fala sobre as possibilidades materiais da escrita, comparando com um curso de desenho, onde você experimenta diferentes materiais, papéis e pontos de vista até descobrir com quais seu traço melhor dialoga. No entanto, quando se trata de escrever, fala-se pouco sobre isso. A escrita segue como uma matéria mental, com pouco espaço para brincadeira ou tentativas fracassadas.
Segundo Ana Godoy, brincar é visto como algo sem importância, enquanto ler e escrever são coisas de gente grande, coisas sérias. Aprender a ler e escrever é, inclusive, um marcador de crescimento. 'Adulto não brinca, adulto produz'. Em um mundo cada vez mais guiado pela produtividade, como abrir espaço para o teste?
Talvez, como escreveu Gloria Anzaldúa, no livro A vulva é uma ferida aberta & outros ensaios, — em referência direta a Virginia Woolf e o clássico feminista (e burguês) Um teto todo seu — , a saída seja: "Esqueça o teto todo seu — escreva na cozinha, se tranque no banheiro. Escreva no ônibus ou na fila da assistência social, no trabalho ou entre as refeições, entre o sono e a caminhada. Eu escrevo sentada na privada".
Agora, vou escrever na cozinha, assando a letra Y, a penúltima do alfabeto. Até a semana que vem já terei digerido o alfabeto todo, de A a Z.
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